sábado, 19 de agosto de 2017

O ingresso acessível e o horror do brasileiro ao que é popular

Luciane de Castro

Há um exercício interessante a se fazer nos transportes coletivos da cidade: a observação. Mais interessante ainda é colocar fones de ouvido em altura razoável com o fim único de captar a conversa alheia.
Num dia de locomoção pela cidade, mais especificamente na Linha Amarela do Metrô, me sentei perto de dois homens. Bem vestidos eles. Bem apessoados, como diriam os antigos. E a resenha que desenrolava era mais ou menos assim:
“Eu acho que você poderia melhorar a presença, sabe?”
“Mas melhorar como? Você acha que essa beca não tá legal?”
“Sim, está legalzinha, mas de repente uma camisa da ~marca x~, um relógio mais pá, sabe? Essas coisas chamam a atenção dos ~fulanos de não sei onde~.”
“Ah, entendi. É, e o sapato? O que você achou?”
“Ah, o sapato tá perfeito. Caiu direitinho com a bainha da calça.”
“Tô pensando em comprar o perfume ~tal~. Ví por um preço razoável, tipo 400 paus.”
“Mesmo que estivesse custando mais, tem que comprar. Essas paradas caras fazem a diferença na hora que as pessoas olham pra você. Camisa da marca ~tal~, relógio ~tal~. Coisa cara é o que há!”
Minha feição deve ter passado de indiferente para “what the hell!!”
Neste momento fiz um exercício de memória e retornei aos meus 15, 16 anos e a busca dos adolescentes por calças de marca, casacos, sapatos e tênis, tudo o que tivesse valor não compatível com o que eu já ganhava como trabalhadora. Claro que olhando praqueles dois barbados, com seus, sei lá, 30 anos, pensei no absurdo da conversa e revivi algumas “necessidades”.
O tempo passa, mudamos, crescemos, amadurecemos. Vivemos, sobrevivemos e reconhecemos que, o básico para nos manter na ativa nos é dado ~aos minimamente privilegiados~ e que qualquer necessidade de parecer ser o que não é, não passa de infantilidade.
A essa altura, alguém deve estar perguntando “mas que porcaria a Lu tá falando que não tem a ver com futebol?!”.
Primeiro se engana, porque o futebol se relaciona com tudo nessa vida e, segundo, que essa necessidade da classe trabalhadora em ascender e se equiparar às classes mais altas, não é fato recente.
Acontece que entre ser de um patamar economicamente mais alto e trabalhar duro para conseguir comprar um carrinho popular, há um salto de tempo que muitas vezes nem três gerações são capazes de transpor.
Quando obrigado a observar a classe a qual pertence, o brasileiro refuta o espelho. Ele não se gosta, ele não se tolera, não se aceita. Ser pobre é um defeito. Pechinchar é feio. Pagar caro é o que há!
E foi mais ou menos dentro deste contexto, na noite da segunda-feira pós jogo entre os tricolores paulista e gaúcho, que li montes e montes de comentários desdenhando o número de torcedores presentes no Morumbi em razão do baixo valor cobrado pelo ingresso.
Isso me trouxe dois tipos de sentimentos:
Um – Não estou entendendo qual o problema no baixo valor do ingresso; e
Dois – Mas que bando de gente burra, que ao invés de enaltecer a ação de um clube que quer manter o povo perto do time e exigir isso também do seu, acha que é mais legal pagar MAIS CARO!
Como se o fato de pagar mais caro pelo ingresso de AR-QUI-BAN-CA-DA, tornasse seu time mais valioso ou qualquer equiparação falaciosa que o valha.
Torcedores se acomodam no estádio do Morumbi
Foto: Pedro Martins/Mowa Press.

O torcedor, deslumbrado com as arenas e o padrão FIFA que arremessou seu clube num mar de dívidas em nome da elitização, esquece que para além dos réis que pagam os caros ingressos, o transporte coletivo não lhe traz conforto, nem segurança quanto ao horário numa grade de transmissão estabelecida por quem é seu credor para mais alguns anos, quiçá décadas! Ele também esquece que, ainda que não dependa do transporte coletivo, aquele estacionamento fatura alto em dias de jogos. E o picolé dentro da arena? E o copo d’água? O refri? Ou vai passar a seco?
Continha de matemática básica: preço majorado do ingresso + gasolina + estacionamento + comes e bebes = um belo percentual de seu suado salário como TRABALHADOR.
Sim, em outra conta: preço majorado do ingresso + jogo às 21h45 (tiraram 15 minutos para tentar passar um pano) + falta de transporte coletivo para além da meia noite + pagar um Uber (também majorado em dias de evento na região) + chegar em casa tarde + levantar cedo para TRABALHAR = levantar cansado/destruído para continuar produzindo a riqueza de meia dúzia.
Pensando nisso tudo, cheguei à conclusão de que boa parte dos brasileiros se amarram em pagar de playboy. Ostentar o que não pode e viver de desmerecer quem tenta fazer a coisa ficar mais justa, mais acessível.
Temos batido consistentemente na questão dos valores absurdos dos ingressos que limam a presença do povão. Temos batido consistentemente na questão dos horários dos jogos em detrimento do conforto do cidadão que quer e tem todo o direito de acompanhar seu time de coração, e vem meia dúzia de passa fome metido a Mark Zuckerberg, desmerecer o bom público presente em um jogo com o argumento do baixo preço do ingresso?
O Santa Cruz teve excelente presença de público no Arruda ao colocar ingressos no valor de R$ 10,00. Tentou realizar outra ação popular com ingressos a R$ 5,00, mas foi impedido em razão das taxas que garantem as burras cheias de federações e CBF.
Não há, por parte da massa, nenhum posicionamento efetivo e ostensivo como ferramenta para as mudanças mais que urgentes no universo futebolístico.
Cartolas seguem indiciados, mandando e desmandando e o povão? Calado.
Ingressos à preços abusivos e fora da realidade do brasileiro comum e o povão? Calado.
Passa todo tipo de dificuldade para acompanhar in loco seu time de coração e continua como? Calado.
Dignidade não é se sacrificar para pagar uma fábula em algo que deve ser acessível. Postura digna e consciente, é batalhar para que todos tenham o direito de estar presentes nas bancadas fazendo festa. O futebol é do povo e não orna com ingresso caro.
Por

Lu Castro

Jornalista especializada em futebol feminino. É colaboradora do Portal Vermelho e é parceira do Sesc na produção de cultura esportiva.

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