terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Na calada da mente


Madrugada do dia treze de fevereiro, duas horas e quinze minutos, seu Paulo se levanta e abre a porta da frente que estava chaveada. Quase por acaso percebi e fui ao encontro dele. Disse-lhe que era madrugada e que era hora de dormir ainda. Ele “queria ver”. Ver o que seu Paulo, perguntei. “Eles”, respondeu. Agora não. Vá dormir seu Paulo, retruquei e ele prontamente voltou para a cama. Meio perdido nas ideias foi se deitando e eu disse-lhe para tirar as calças e os chinelos. Ainda tive que esperar um tempo até ele me atender e voltar a dormir. Agora são nove horas e vinte e quatro minutos da manhã e seu Paulo acordou como se nada tivesse acontecido.

Essas “viagens” do seu Paulo são praticamente diárias e começam à tardinha. Geralmente o assunto dele é: “Onde eu durmo?”; “Cadê minhas ferramentas?”; “A minha casa não é esta.”; “Como eu vim parar aqui?” e por aí afora num rosário aflitivo e de respostas difíceis.

Isto vem de há um bom tempo, mas agravou-se a partir do momento que lhe tiraram a chave da casa. Ele nunca conseguiu assimilar isto em sua mente e a cada dia a situação fica mais triste.

Não costumo abordar os assuntos e as teimosias do seu Paulo, mas hoje pela manhã relatei as aventuras dele na noite anterior e ele, admirado, só me disse: “Que coisa!”. Zero de lembrança. Pelo menos acho que não sofre pela perda do cantinho dele.

Em minha casa não lhe falta nada. Principalmente porque a Solange, uma de suas filhas, lhe cobre de atenção e carinho tentando compensar o que a memória e outros lhe tiraram.

Desde a manhã, quem dita a rotina da casa é ele e logo que levanta o café é assinado com a firme frase: “Pai! O café”. Às vezes, nem isto ele entende e a Solange o conduz meigamente até a mesa. Daí seu Paulo vai para a sua cadeira “ler” o jornal.

Às vezes, uma soneca matinal dá o tom do dia e todos aqui ficam em prontidão. Quando seu Paulo está firme e disposto, caminhar até a esquina é o prêmio e todos nós ficamos alegres.

A contra gosto, pega sua bengala. Normalmente diz que não precisa e a leva mais no ar do que em apoio. Chega até o portão e para. Olha como um marujo olha o horizonte em alto mar. Sabe se lá quanta coisa passa por sua cabeça e só depois segue adiante passo a passo.

Diante do portão de sua antiga casa acontece uma parada religiosa. Não tem outra. Olha, olha; mecanicamente mete a mão no bolso e tira uma chave imaginária e vai em direção à fechadura.

Para quem sabe o real significado deste gesto é um momento de agonia e pena. Sem chave, o portão continua fechado e seu Paulo então caminha em direção à esquina...

Agora a pouco, do nada, seu Paulo falou: “Vou lá passando o Pepino”. “Ué?!?!?! Fazer o quê pai?”, perguntou a Solange. “Buscar a minha escada que está lá guardada”, respondeu ele. Um silêncio enche a sala. Sabemos que não há escada lá.

É o peso da idade. Noventa anos onde o desgaste mental desaguou numa dependência injusta diante do tanto que produziu em sua vida como trabalhador de sol a sol sem cansar ou desistir diante dos obstáculos.

Aquele que tudo determinava e a todos provinha agora vive dos veios guardados a sete chaves em seu íntimo. Não há como direcionar estas lembranças e elas manifestam-se na calada da mente a hora que lhe prover; sem script, sem ordem, sem nexo. Tudo na vontade do Pai Maior que nos pôs a cuidar este tesouro de pessoa.

Criou três filhas, acolheu três genros e beneficiou muitas pessoas com o fruto de seu trabalho. Construiu muitas casas, mas hoje o lar que o acolhe às vezes lhe é estranho. Não por falta de gratidão porque no lar dos Munhoso seu Paulo é o brilho maior.

Enfim, está chegando a tardinha deste treze de fevereiro de dois mil e dezoito. Neste momento a Solange lava os pés de seu Paulo para em seguida fazer uma massagem reconfortante para ajudar a desinchá-los.

Não tarda e a janta já vem. Daí é caminha porque ninguém é de ferro. Como será a noite não sabemos e o importante é estar preparado para o dia seguinte. É assim, dia a dia, noite a noite. Tudo na graça de Deus.

















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