Madrugada do dia treze de
fevereiro, duas horas e quinze minutos, seu Paulo se levanta e abre a porta da
frente que estava chaveada. Quase por acaso percebi e fui ao encontro dele.
Disse-lhe que era madrugada e que era hora de dormir ainda. Ele “queria ver”.
Ver o que seu Paulo, perguntei. “Eles”, respondeu. Agora não. Vá dormir seu
Paulo, retruquei e ele prontamente voltou para a cama. Meio perdido nas ideias
foi se deitando e eu disse-lhe para tirar as calças e os chinelos. Ainda tive
que esperar um tempo até ele me atender e voltar a dormir. Agora são nove horas
e vinte e quatro minutos da manhã e seu Paulo acordou como se nada tivesse
acontecido.
Essas “viagens” do seu Paulo
são praticamente diárias e começam à tardinha. Geralmente o assunto dele é:
“Onde eu durmo?”; “Cadê minhas ferramentas?”; “A minha casa não é esta.”; “Como
eu vim parar aqui?” e por aí afora num rosário aflitivo e de respostas
difíceis.
Isto vem de há um bom tempo,
mas agravou-se a partir do momento que lhe tiraram a chave da casa. Ele nunca
conseguiu assimilar isto em sua mente e a cada dia a situação fica mais triste.
Não costumo abordar os assuntos
e as teimosias do seu Paulo, mas hoje pela manhã relatei as aventuras dele na
noite anterior e ele, admirado, só me disse: “Que coisa!”. Zero de lembrança.
Pelo menos acho que não sofre pela perda do cantinho dele.
Em minha casa não lhe falta
nada. Principalmente porque a Solange, uma de suas filhas, lhe cobre de atenção
e carinho tentando compensar o que a memória e outros lhe tiraram.
Desde a manhã, quem dita a
rotina da casa é ele e logo que levanta o café é assinado com a firme frase:
“Pai! O café”. Às vezes, nem isto ele entende e a Solange o conduz meigamente
até a mesa. Daí seu Paulo vai para a sua cadeira “ler” o jornal.
Às vezes, uma soneca matinal
dá o tom do dia e todos aqui ficam em prontidão. Quando seu Paulo está firme e
disposto, caminhar até a esquina é o prêmio e todos nós ficamos alegres.
A contra gosto, pega sua
bengala. Normalmente diz que não precisa e a leva mais no ar do que em apoio.
Chega até o portão e para. Olha como um marujo olha o horizonte em alto mar.
Sabe se lá quanta coisa passa por sua cabeça e só depois segue adiante passo a
passo.
Diante do portão de sua
antiga casa acontece uma parada religiosa. Não tem outra. Olha, olha;
mecanicamente mete a mão no bolso e tira uma chave imaginária e vai em direção
à fechadura.
Para quem sabe o real
significado deste gesto é um momento de agonia e pena. Sem chave, o portão
continua fechado e seu Paulo então caminha em direção à esquina...
Agora a pouco, do nada, seu
Paulo falou: “Vou lá passando o Pepino”. “Ué?!?!?! Fazer o quê pai?”, perguntou
a Solange. “Buscar a minha escada que está lá guardada”, respondeu ele. Um silêncio enche a sala. Sabemos que não há escada lá.
É o peso da idade. Noventa
anos onde o desgaste mental desaguou numa dependência injusta diante do tanto
que produziu em sua vida como trabalhador de sol a sol sem cansar ou desistir
diante dos obstáculos.
Aquele que tudo determinava
e a todos provinha agora vive dos veios guardados a sete chaves em seu íntimo.
Não há como direcionar estas lembranças e elas manifestam-se na calada da mente
a hora que lhe prover; sem script, sem ordem, sem nexo. Tudo na vontade do Pai
Maior que nos pôs a cuidar este tesouro de pessoa.
Criou três filhas, acolheu
três genros e beneficiou muitas pessoas com o fruto de seu trabalho. Construiu
muitas casas, mas hoje o lar que o acolhe às vezes lhe é estranho. Não por
falta de gratidão porque no lar dos Munhoso seu Paulo é o brilho maior.
Enfim, está chegando a
tardinha deste treze de fevereiro de dois mil e dezoito. Neste momento a Solange
lava os pés de seu Paulo para em seguida fazer uma massagem reconfortante para
ajudar a desinchá-los.
Não tarda e a janta já vem.
Daí é caminha porque ninguém é de ferro. Como será a noite não sabemos e o
importante é estar preparado para o dia seguinte. É assim, dia a dia, noite a
noite. Tudo na graça de Deus.
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