De todas as dores catalogadas pela humanidade, só duas
despertam uma sensação de paz: a saudade e o amor ao Xavante. Porque torcer
pelo Brasil de Pelotas é uma enfermidade hereditária, progressiva e incurável,
caracterizada pela dor aguda. Até nos tantos momentos de glória colhidos nesta
estrada centenária, há sempre um aperto no peito palpitante, seguido de um
suadouro, às vezes uma tremedeira. Na iminência de um triunfo colossal ou mesmo
de um raro fracasso, não importa, um xavante se mostra incapaz de relaxar.
Ajoelha-se no chão duro, tampa os olhos com as mãos em concha, senta-se na
arquibancada com o olhar perdido no chão. O bem-querer a este clube é, antes de
tudo, uma inquietação permanente. E é lindo que seja assim.
Não há aqui, de nossa parte, nenhum louvor masoquista. A
dor, mesmo quando vizinha do prazer, sempre dói. Mas são de dores assim que se
forja pessoas do nosso sangue e da nossa raça. Aliás, talvez a dor deste amor
leve até certa vantagem sobre a saudade, porque esta sempre se nutre de algo
que foi bom e já não consegue mais ser. O Xavante, ao contrário, faz de cada
dor um recomeço. Para cada trituração de alma no domingo, há sempre uma
segunda-feira para renovar os devaneios. O Xavante se perpetua na gente.
Para homens e mulheres de nossa
argamassa, com sensibilidade para apreciar muito mais a viagem do que o
destino, o recomeço é um combustível para uma vida menos pasteurizada. Estamos
permanentemente atrás de emoções próprias, por mais singelas que possam parecer
aos olhos apressados da multidão.
O amor ao Xavante também é um
remédio potente contra a solidão. Não há como se sentir sozinho amando o Brasil
de Pelotas. Nossa terra natal, hábil neste negócio de espalhar seus filhos pelo
mundo, nos empurra Ponte do Retiro acima, com o coração em frangalhos. Mas, por
mais que nos afastemos do Bento Freitas, há sempre um dos nossos para comungar
as dores num perímetro humanamente vencível. Nesta proteção emocional que
oferecemos uns aos outros, o Xavante se torna uma maçonaria, inclusive pela
condição quase secreta se medida pelas emoções fabricadas para multidões no
futebol.
Inexiste qualquer traço
artificial na cumplicidade entre os xavantes. Nem o marqueteiro mais hábil do
planeta saberia reproduzir as razões que nos fazem querer estar juntos. Às
vezes a língua portuguesa nos nega recursos para explicarmos esta paixão, mas
basta um abraço, basta um olhar, para que ela seja integralmente compreendida.
Ao sobrevivermos, desviamos o curso natural das coisas, que parece convergir,
meio bovinamente, para sentimentos hegemônicos. Reincidimos numa paixão
artesanal diante de um cenário onde as pessoas buscam alívio não nas pequenas
afinidades, mas na esterilidade daquilo que se mede em números com muitos
zeros.
Quanto mais gente gosta de uma
mesma coisa, mais barato fica empacotá-la para venda, fingindo que se trata de
algo espontâneo. Nesta toada, nove em cada 10 brasileiros declaram-se
torcedores de 12 clubes. Uns já arrastam a asa desavergonhadamente para o
Barcelona e o Real Madrid. E o país do futebol tem 700 e tantos clubes. Em
condições tão hostis de concentração, só chegamos até aqui graças à lealdade
perpetrada há cinco gerações numa cidade pobre de grana mas transbordante de
amor.
Jamais pertenceremos a uma fauna
de estádios com astral de shopping center e liturgia de ópera, cujos ingressos
custam um terço do salário mínimo. Somos como o sujeito fissurado por música
que, mesmo com toda parafernália digital à disposição, cultiva um vinil porque
entende a sujeira como parte integrante da experiência. O Brasil de Pelotas é o
nosso chiado, o dedo do guitarrista deslizando pelas cordas. Precisa existir,
sob pena de perdemos a autenticidade, de esquecermos quem somos e de onde
viemos.
Tratamos o clube como nosso em
resposta ao turbilhão de experiências provocadas por esta dor ancestral.
Convergimos ao estádio com sacos de cimento às costas, antecipamos
mensalidades, compramos rifas, fazemos pedágios em semáforos para viajar com o
time. E ainda assim, tudo o que fizermos será insuficiente para retribuir o que
o Brasil de Pelotas faz por nós.
Ser xavante, em resumo, é
encontrar o suficiente naquilo que os outros insistem em achar pouco.
É uma enorme sorte ter nascido
com esta dolorosa doença. - Fabrício Barcelos Cardoso
Foto: Vítor Rafael Lautenschläger
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