segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

TORCIDA XAVANTE

De todas as dores catalogadas pela humanidade, só duas despertam uma sensação de paz: a saudade e o amor ao Xavante. Porque torcer pelo Brasil de Pelotas é uma enfermidade hereditária, progressiva e incurável, caracterizada pela dor aguda. Até nos tantos momentos de glória colhidos nesta estrada centenária, há sempre um aperto no peito palpitante, seguido de um suadouro, às vezes uma tremedeira. Na iminência de um triunfo colossal ou mesmo de um raro fracasso, não importa, um xavante se mostra incapaz de relaxar. Ajoelha-se no chão duro, tampa os olhos com as mãos em concha, senta-se na arquibancada com o olhar perdido no chão. O bem-querer a este clube é, antes de tudo, uma inquietação permanente. E é lindo que seja assim.

Não há aqui, de nossa parte, nenhum louvor masoquista. A dor, mesmo quando vizinha do prazer, sempre dói. Mas são de dores assim que se forja pessoas do nosso sangue e da nossa raça. Aliás, talvez a dor deste amor leve até certa vantagem sobre a saudade, porque esta sempre se nutre de algo que foi bom e já não consegue mais ser. O Xavante, ao contrário, faz de cada dor um recomeço. Para cada trituração de alma no domingo, há sempre uma segunda-feira para renovar os devaneios. O Xavante se perpetua na gente.
Para homens e mulheres de nossa argamassa, com sensibilidade para apreciar muito mais a viagem do que o destino, o recomeço é um combustível para uma vida menos pasteurizada. Estamos permanentemente atrás de emoções próprias, por mais singelas que possam parecer aos olhos apressados da multidão.
O amor ao Xavante também é um remédio potente contra a solidão. Não há como se sentir sozinho amando o Brasil de Pelotas. Nossa terra natal, hábil neste negócio de espalhar seus filhos pelo mundo, nos empurra Ponte do Retiro acima, com o coração em frangalhos. Mas, por mais que nos afastemos do Bento Freitas, há sempre um dos nossos para comungar as dores num perímetro humanamente vencível. Nesta proteção emocional que oferecemos uns aos outros, o Xavante se torna uma maçonaria, inclusive pela condição quase secreta se medida pelas emoções fabricadas para multidões no futebol.
Inexiste qualquer traço artificial na cumplicidade entre os xavantes. Nem o marqueteiro mais hábil do planeta saberia reproduzir as razões que nos fazem querer estar juntos. Às vezes a língua portuguesa nos nega recursos para explicarmos esta paixão, mas basta um abraço, basta um olhar, para que ela seja integralmente compreendida. Ao sobrevivermos, desviamos o curso natural das coisas, que parece convergir, meio bovinamente, para sentimentos hegemônicos. Reincidimos numa paixão artesanal diante de um cenário onde as pessoas buscam alívio não nas pequenas afinidades, mas na esterilidade daquilo que se mede em números com muitos zeros.
Quanto mais gente gosta de uma mesma coisa, mais barato fica empacotá-la para venda, fingindo que se trata de algo espontâneo. Nesta toada, nove em cada 10 brasileiros declaram-se torcedores de 12 clubes. Uns já arrastam a asa desavergonhadamente para o Barcelona e o Real Madrid. E o país do futebol tem 700 e tantos clubes. Em condições tão hostis de concentração, só chegamos até aqui graças à lealdade perpetrada há cinco gerações numa cidade pobre de grana mas transbordante de amor.
Jamais pertenceremos a uma fauna de estádios com astral de shopping center e liturgia de ópera, cujos ingressos custam um terço do salário mínimo. Somos como o sujeito fissurado por música que, mesmo com toda parafernália digital à disposição, cultiva um vinil porque entende a sujeira como parte integrante da experiência. O Brasil de Pelotas é o nosso chiado, o dedo do guitarrista deslizando pelas cordas. Precisa existir, sob pena de perdemos a autenticidade, de esquecermos quem somos e de onde viemos.
Tratamos o clube como nosso em resposta ao turbilhão de experiências provocadas por esta dor ancestral. Convergimos ao estádio com sacos de cimento às costas, antecipamos mensalidades, compramos rifas, fazemos pedágios em semáforos para viajar com o time. E ainda assim, tudo o que fizermos será insuficiente para retribuir o que o Brasil de Pelotas faz por nós.
Ser xavante, em resumo, é encontrar o suficiente naquilo que os outros insistem em achar pouco.
É uma enorme sorte ter nascido com esta dolorosa doença. - Fabrício Barcelos Cardoso
Foto: Vítor Rafael Lautenschläger


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