sábado, 21 de março de 2015

O Maracanã precisa do Xavante

Por Fabrício Cardozo

Pelotas há muito não comporta a quantidade de energia nos braços e cérebros de seus filhos. Milhares, com o coração em frangalhos, se jogam Ponte do Retiro acima. Há quem culpe os acanhamentos da economia. Eu, com a autoestima mais alta que o terraço do Banco do Brasil da Lobo da Costa, entendo como excesso de sagacidade no povo. Talvez nem Londres, Paris, Nova York e outros vilarejos fossem capazes de absorver tanta gente boa. Saímos pelo mundo em missão quase sacerdotal, pelo bem de quem vai nos receber. O resto é saudade.
Pois uma conversa recorrente entre pelotenses desgarrados gira mais ou menos assim:
– Tchê, tens ido a Pelotas?
– Tenho.
– Que tal?
– Sempre volto de lá deprimido?
– Por quê?
– Ah, sei lá, a coisa parece que não anda. O sujeito fica lá, morando na mesma casa, fazendo as mesmas coisas, examente como 20, 30 anos atrás. Só muda o cabelo, que fica mais branco ou então desaparece.
Vejo aí uma confusão entre permanência e decadência, que termina por ser injusta e contraditória. Não tenho orgulho do mesmo esgoto a céu aberto, do mesmo buraco de rua na mesma rua sem pavimentação, tipos comuns da paisagem local. Mas nutro um profundo respeito existencial por quem decidiu ficar. Jamais os vi frustrados, pelo menos por esta opção. Quem deixa nossa pasmaceira úmida, por sua vez, se mete num jogo asfixiante. Trabalha-se loucamente em sacrifício do tempo na companhia das únicas pessoas que se importarão conosco quando o mercado se cansar da gente. Giramos uma roda insana atrás… de quê, mesmo?
***
Vinha mergulhado nestes pensamentos às 19h de 18 de março de 2015. Queria entender por que um choro fermentava na altura da garganta desde que, duas horas antes, eu pusera os pés no Rio de Janeiro. Só interrompi a viagem porque o metrô carioca vertia pessoas pelas janelas, quase literalmente. Tive a impressão de ver alguns passageiros com a bochecha achatada no vidro da porta, tal a pressão da multidão no vagão.
Num movimento de extrema coragem, entrei na Linha 2 do Metrô carioca, em direção a Pavuna, rogando por chegar vivo ao Maracanã. Apertado como bota de gaúcho com meia soquete, ainda ouvi a flauta de um flamenguista, que reconhecera o distintivo do nosso amado clube ao meu peito.
– Vocês afinaram lá, hein?
– Pois é. Mas já estamos orgulhosos de estar aqui – desconversei com humildades cínicas, mantido naquele firme propósito de chegar com vida ao Maracanã.
Na estação do estádio, abri caminho com os ombros para conseguir descer do trem. Parei ali na plataforma, para recuperar o ar. Foi quando ouvi o apito anunciando a partida da composição. Dei dois passos para trás e, com o pulmão já reinflado, gritei para dentro do trem.
– Dá-lhe, Xavanteeeeeeeeeee!!!!
Depois desta imprudência, tive certeza que voltaria vivo para casa.
***
Meus pensamentos, aqueles entre o ficar e o partir, ressurgiram diante do primeiro rosto pelotense encontrado nas cercanias do Maracanã. Era meu amigo, colega dos tempos de Zero Hora, o meio fotógrafo e meio poeta, mas ambos talentos integrais, Nauro Júnior. O cara tinha vencido 1,8 mil quilômetros entre as duas cidades maravilhosas a bordo de um Fusca. Tudo para registrar o Xavante contra o Flamengo.
Comecei a entender então o que aquela noite representaria. O Nauro resolveu ficar. O Nauro ousou viver mais com menos. Na mão dele, os objetos se humanizam, ganham nome. Poderia ter um carro zero, mas prefere o Segundinho. Não tenho testosterona para bulinar carros como ele, mas reconheço a beleza desta relação num tempo de culto ao descartável. É um jeito de viver que mimetiza Pelotas como cidade e como espírito.
Não quero bancar o hippie, criticando as ambições que movem o mundo. Sem elas, o computador que ora nos une não existiria. A humanidade tem uma dívida assombrosa com os inquietos de todos os quadrantes. Mas há um outro jeito de se levar a existência. É urgente que reconheçamos a beleza de se estar.
No intervalo do jogo, flanando de contentamento com nosso empate heroico e o embate de igual para igual contra o Flamengo, encontrei o Pé Grande do Fragata na copa do Maracanã, um amigo desde os idos em que a distância não me obrigava a ficar longe da Baixada. Depois de mandar ver num pacote de biscoito Globo, subimos pela rampa que nos reconduziria às arquibancadas. Deparamos então com uma vista apoteótica do distintivo do Brasil de Pelotas no telão do, apesar das reformas cosméticas, ainda o mais mítico estádio do mundo. Mirei nos olhos do Pé, que estavam como os meus, cobertos por aquilo Chitãozinho e Chororó chamam de nuvem de lágrimas.
Como era bom ter chegado até ali, sem jamais ter entendido que a única coisa que faz sentido é chegar ali. As emissoras esportivas ficaram embasbacadas com a alegria da xavantada ao término do jogo. A torcida do Flamengo nos aplaudia. Os jogadores deles nos elogiaram. Tive dó deles, tive dó de mim. Estamos todos vitimados pela falsa noção de sucesso.
O mundo precisa desta especialidade, meio pelotense, meio platina, de encontrar o suficiente naquilo que os outros insistem em achar pouco.
Por isto, como bom pelotense que cruza a Ponte do Retiro, o Xavante fez mais bem ao Maracanã do que o Maracanã fez ao Xavante.
***
Nota de rodapé: Deitado como um mendigo na frente do Santos Dummond, à espera do voo de volta para casa, perdi (ou furtaram) meu celular.
Um jornada que nos recomenda o desapego das coisas que se compram só poderia ter terminado assim.

Comentários:

  • Antonio Luiz Munhoso ·  Quem mais comentou · Colégio Municipal Pelotense
    Termino de ler este texto entre o bem e o mal. Não sei qual o sentimento mais forte porque sequer consigo enxergar as teclas direito. Inenarrável de emoção. Cada vez mais contaminado pela inveja, Tive sonhos de partir, mas optei por cuidar daquela que me gerou. Na verdade não fiz tudo que deveria porque muito cedo fui contaminado por este vírus que nem a ciência consegue decifrar. Há quem diga que ser Xavante é doença, mas começo a entender tratar-se de força sobrenatural. Sim porque só uma Luz Divina para levar alguém a profetizar “O Maracanã precisa do Xavante”. E o Fabrício Cardozo está certo porque, mesmo com milhões de reais gastos nesse Templo do Futebol e em tantos outros estádios do Brasil, precisou um clube do interior gaúcho, ungido por uma Torcida maravilhosa, atravessar o País para mostrar que não há distância capaz de impedir seus apaixonados de assistir um jogo. Entre Nós (Xavantes) corre solto o termo “inveja branca”. Foi a maneira que achamos para, ao mesmo tempo, desejar felicidades, parabéns, aos que conseguem vencer obstáculos financeiros ou profissionais para acompanhar Nosso Time e lamentar a pena que nos é imposta por ficar apenas no radinho, na internet ou na tv que sofaniza cada vez mais seres que perdem o prazer de estar em uma arquibancada. A força do texto de Fabrício resgata sentimentos que às vezes fica ali quietinho no fundo da alma. Bem coisa do futebol mesmo e quando menos se espera, há mais de mil e oitocentos quilômetros, nos damos conta que o nosso G, E. Brasil e sua maravilhosa Torcida estarão sempre ali, na fronteira da vitória, prontos para assumir de vez o seu lugar na Galeria dos Campeões.
    • Ramiro Curi de Lemos · Ufpel
      Meu prazer é ver o Xavante se apresentar(nosso time não joga,ele se apresenta).o resultado se for de vitória,muito melhor,mas se não for,tambem não é o mais importante,pois importante é ver o clube representado dentro do campo pelo time.Quero é ver nossos representantes,via de regra guerreiros,lutando e nossas camisas em movimento dentro das quatro linhas.E nossa torcida,gritando,pulando,fazendo festa.Ah,e em qualquer lugar que ele jogar,estaremos.Pois dessa vez foi no Maracanã e foi para lá que fomos e foi lá mesmo,naquele templo diante da maior torcida em número de integrantes,que fomos e saímos aplaudidos e admirados.Tem que olhar,prá aprender......
      • Marcio Neves ·  Quem mais comentou · Trabalha na empresa ZOPONE ENGENHARIA - REGIONAL POA
        Lembro de 1996 em Porto Alegre no jogo contra o inter que perdemos de 4x1 e os 5 mil xavantes que lá estavam não arredavam o pé do Beira rio fazendo festa, parecia que havíamos sido campeões, os refletores já apagados e a garra xavante simplesmente não parava. Lembro de ouvir o locutor Aroldo de Souza da rádio Guaíba ir as lágrimas dizendo assim: - Eu não acredito no que os meus olhos vêem e no que meus ouvidos escutam, pois estou diante de um fenômeno chamais visto no Gigante de Beira Rio, os rubros negros pelotenses são goleados com 4 gols e fazem um carnaval ao final do jogo. Ibsen Pinheiro dirigente do inter dizia: O que me fez vir aqui hoje não foi o inter, vim aqui pra ver a festa da torcida xavante, que torcida o Brasil tem. Outro dizia assim: Cientistas e religiosos não conseguem explicar o sentimento de ser xavante, talvez os ufólogos consigam por que a torcida do Brasil realmente é coisa de outro planeta... São por causas desses relatos que o orgulho de ser rubro negro se renova no coração de cada um de nós.
        • Saionara Borges · Pelotas
          Simplesmente fantástico o texto, que só poderia ter vindo da alma de um também poeta.
          • Júlio Brauner ·  Quem mais comentou · Aposentados do INSS na empresa INSS
            Encontrei uma grande felicidade no Maraca e até foi bom perder, por que se o Xavante ganhasse, eu voltava morto prá Porto. Foi demais...
            • Michel Vergara · APROVISIONADOR na empresa Walmart
              Belo texto parabens
              • Jorge Luis Gonçalves · Trabalha na empresa Ana Maria Lentes de contato
                Parabéns pelo texto, mais uma vez descrevendo muito bem nossa saída de casa!
                • Miguel Martins · Jornalista responsável e Editor na empresa Diretor da Revista Vida Saudável
                  Parabéns pelo belo texto, meu querido! Abração!

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