Em território xavante,
jogo do Brasil contra o Flamengo pela Copa do Brasil vira celebração ao ato de torcer.
POR DANIEL CASSOL
Se pudesse escolher em vida, o republicano e abolicionista Álvaro Chaves optaria por esquinar com a Princesa Isabel em sua cidade natal Pelotas, no portão de entrada de uma festa popular arrabaleira, em vez de dar nome a um conduto forçado de 60 milhões de reais na capital do Estado. O militar Bento Martins teria visto mais sentido em lutar nas guerras do Prata, dos Farrapos e do Paraguai se soubesse que viveria com a Redentora numa confluência de churrascos, pagodes e destilados em meia garrafa. O português José Antônio Moreira teria descansado em paz naquela primavera de 1876 se soubesse que, além da sorte de ter recebido grandes glebas de terra no sul do Brasil e o sonoro título de nobreza de Barão do Butuí, a posteridade ainda lhe reservaria uma esquina com João Pessoa no epicentro de uma celebração pagã ao som de Raça Negra.
Os personagens do Império e da República Velha emprestam seus nomes às fronteiras do que se transforma, na República Peemedebista, em território xavante a cada partida do Brasil de Pelotas. A rua Álvaro Chaves delimita o início da concentração. Os ambulantes dispõem suas tendas ao longo da Princesa Isabel e os torcedores se esparramam pela Bento Martins e pela João Pessoa até o limite lateral demarcado pela Barão do Butuí, de onde parte a charanga em um dos rituais ali celebrados. Em dias de jogos, aquele naco do bairro Simões Lopes Neto vira um altar no qual os xavantes cultuam não o time, necessariamente, mas o fato de torcerem por ele.
Pois escuite.
Não eram bem duas horas da tarde de quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015, quando um sujeito que assava uma costela na rua Princesa Isabel chamou uma breve convenção entre os comensais e decidiu vestir sua fantasia de Papa. Improvisou um discurso com solenidade ébria.
O Flamengo pode ter a maior torcida do Brasil, mas a mais fiel é a do nosso xavante. A gente não vive por títulos, vive por paixão ao time. Meu pai sempre falou: ser Brasil é pior que ser corno. Da mulher tu deixa. Do Brasil, jamais.
O grupo do Papa foi um dos primeiros a demarcar seu lote no território xavante naquela tarde mormacenta. Às dez da noite, Brasil e Flamengo jogariam pela Copa do Brasil, reeditando o confronto histórico do Campeonato Brasileiro de 1985, quando cerca de 20 mil xavantes estufaram o Bento Freitas para ver Davi acertar um bodocaço no melão de Golias, que contava com os reforços de Zico, Mozer, Andrade e Bebeto. Era só história, o resultado da partida mostraria logo depois.
Um homem se apresentou com ares de autoridade: sou o cara do grito. Era conhecido por percorrer a arquibancada gritando rubro-neeegro bem forte, como se guardasse um amplificador na caixa torácica. Enquanto ainda havia pouco movimento na Princesa Isabel, um lutador espancava um saco de areia, treinando para competir em uma versão interiorana do UFC. Mais tarde, a garagem se transformaria em bar e sanitário. O latão de Brahma a cinco reais era mais caro que a média do mercado, mas dava direito a acessar o banheiro — ou o que restou dele lá pelas tantas. Valia a pena, de qualquer forma.
Ainda havia serviço dentro do estádio. Homens instalavam alguma coisa no placar eletrônico, outro soldava placas, pedreiros ultimavam um concreto, enquanto um senhor gordo arrumava com paciência as carnes de porco nos espetinhos já no fogo, mesmo cedo da tarde. Não se questiona a ciência de um assador. Do lado de fora, senhores de meia idade que caminhavam a esmo pelas redondezas tentavam ser gentis com uma produtora do Sportv:
A senhora não vai esquecer isso aqui.
Jovens integrantes de uma torcida organizada dobraram a esquina carregando um tanque de lavar roupa para efeitos de churrasqueira. Focos de brasas se esparramavam pelo território xavante, já tomado pelo rubro-negro das camisetas e bandeiras. Bares eram instalados nas garagens das casas e nos porta-malas dos carros. Um vendedor mais preparado vendia caipirinhas: a melhor de Pelotas e região. Seda cor do batom, arco-íris crepom, nada vai desbotar, brinquedo de papel marchê. Era João Bosco no pagode da Bento Martins. Sempre pensei que fosse papel machê.
A abertura dos portões estava marcada para as sete horas, mas antes das cinco já havias filas consideráveis. Encostado num portão, um senhor disse que só estava ali para olhar o movimento: ficava muito nervoso nos jogos do Xavante e tinha decidido se aposentar da arquibancada. No meio da multidão, um senhor de 80 e poucos anos ostentava uma bicicleta azul e brinquedos de madeira. Ao câmera da GEB TV, deu o serviço completo sobre sua trajetória e sobre a partida de 1985:
Fui no Maracanã e vim aqui na Baixada.
Meus nenês eram tudo pequenininhos, hoje já estão uns homens.
E esses caminhões eu faço há 33 anos e até pros Estados Unidos já vendi.
Valmir Louruz, técnico do Brasil em 1985, foi recebido por um folclórico gandula do Bento Freitas, também presente na vitória sobre o Flamengo. Trocaram piadas sobre a partida. O gandula não gosta do apelido, logicamente, mas todos o chamam de Três Cu (pode tirar, se achar melhor).
A tensão começou a subir depois que deu sete horas e os portões não foram abertos. Um drone sobrevoou a rua e um grupo de adolescentes cantou, mirando o céu, a versão rubro-negra para Rádio Pirata, do RPM, uma das tantas músicas que ficariam grudadas na mente pelas semanas seguintes. No underground repousa o repúdio. Uma senhora trouxe o neto em um carrinho de bebê, só para observar a movimentação. Um pônei vestido de azul e amarelo cruzou a multidão rubro-negra e não foi mais visto.
Vinha um zunido da esquina entre a João Pessoa e a Barão do Butuí. Sobre um palco improvisado na traseira de uma Fiorino, uma dupla de músicos tocava Cheia de Manias, do Raça Negra, para uma pequena multidão que se abastecia de cerveja no bar mais bem equipado da região. Se estou na sua casa, quero ir pro cinema, você não gosta. Jogo do Xavante, você adora. Quem sabe faz ao vivo.
No caos musical dos arredores da Baixada, a charanga começou seu aquece do outro lado da rua. É o primeiro grande ritual pré-jogo da torcida do Brasil. Avançou sobre a João Pessoa e fez uma grande performance na frente do portão principal do estádio, sob o comando de um grave mestre de bateria, que parecia levar a sério seu ofício. Tiozões em transe tocavam tarol, surdo e frigideiras. Ao comando da charanga, a turba começou a cantar uma sequência musical que passou pelo hino do Brasil e terminou em um axé anos 90 não identificado — que parecia Luiz Caldas num primeiro momento, mas deve ser algo entre Asa de Águia e Chiclete com Banana.
O ônibus da delegação despontou na Barão de Butuí, no último grande ritual antes que todos decidissem entrar no estádio. Foi difícil para o coletivo avançar sobre o mar de gritaria, batucada e sinalizadores. Em outros tempos, os jogadores desciam no meio da torcida, agora uma corda delimita uma área para o estacionamento — e todos respeitam, mesmo que seja apenas uma corda. E dá-lhe RPM.
Ao final do processo, surgiu na rampa que dá acesso às cadeiras, entre carregado e empurrado pela torcida, um Bira visivelmente transtornado. O autor do primeiro gol contra o Flamengo há 30 anos conseguiu emendar uma frase:
Cara, eu já estou assim, em prantos, porque não tem,
não tem time no mundo que faça o que eles estão fazendo.
Não é importante, mas teve o jogo também. Quem assistiu à partida pela televisão sentiu a torcida xavante muito quieta. Talvez tenha sido pelo desgaste da festa do lado de fora, ou talvez porque o jogo não ajudava. Depois de uma breve pressão inicial do Brasil, o Flamengo passou a dominar o jogo e fez o primeiro gol com Alecsandro, numa falha do zagueiro Ricardo Bierhals. Como é o futebol: em 1985, Bira abriu o placar numa falha tremenda da zaga flamenguista. Veio o segundo tempo, e Pará ampliou, placar que eliminava a necessidade de um jogo de volta no Maracanã.
Os torcedores posicionados no centro do campo assistiam a tudo sujos de pó vermelho expelido pelos extintores de incêndio na entrada dos jogadores em campo. Crianças se agarravam no alambrado e descarregavam xingamentos. Badico, artilheiro dos times do interior e hoje técnico do Farroupilha, de Pelotas, passou a torcida em revista. Um pedaço da arquibancada caiu, outro foi interditado. Um torcedor atribuiu o primeiro gol do Flamengo à falta de concentração provocada pela questão da arquibancada. Um homem irrompeu a roda de amigos e elaborou um comentário:
- O jogo está bom, só que tomamos um gol trouxa.
- Dois gol trouxa, corrigiu um amigo.
- Bah, nem vi o segundo gol. Estava bebendo.
A falta no último lance do jogo todo mundo viu. Demorou um tempo até que as coisas se ajeitassem e Rafael Forster fosse autorizado a cruzar a bola para dentro da área do Flamengo. O centroavante Nena subiu alto na segunda trave e o clichê acaba sendo inevitável. Com Nena, subiram todos: o Papa xavante, o lutador, o homem do grito, o sujeito que não viu o gol porque estava bebendo, o senhor do caminhão, Valmir Louruz, Bira, o mestre da bateria, o tocador de frigideira, Três Cu, a mãe com seu filho de colo, o vendedor de capas de chuva, o assador, as mulheres, as crianças e os velhos xavantes de todas as cores. O gol provocou uma situação inusitada. O Brasil saía de campo derrotado, mas os torcedores festejavam a sobrevida na competição e a chance de mostrarem, no Maracanã, que o que importa é jamais abandonar.
Veja e reportagem em vídeo da festa xavante no dia da partida entre Brasil e Flamengo. Não esqueça de selecionar a opção em HD:
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